quarta-feira, 16 de janeiro de 2019

Guardiões de Sementes


                                                                  


                                                                                      Destino da árvore. Ela perdeu a copa e com
                                                                                       isso o diálogo com o mundo se tornou mais
                                                                                       difícil. Ela perdeu o tronco e, assim teve que se
                                                                                       fortalecer muito para se manter sustentável.
                                                                                       Perdeu as raízes e empreendeu grande
                                                                                       empenho para continuar a se renovar. Perdeu
                                                                                       a seiva e teve que aprender a conviver com a
                                                                                       solidão e detração. Mas sobrou a semente.      
                                                                                       Sente-se hoje apenas semente. E como                    
                                                                                       semente, se sente inteira. Pois na semente se
                                                                                      encontra o frescor da copa, o vigor do tronco,
                                                                                      o segredo das raízes e a vitalidade da seiva.
                                                                                                                                                      (Boff)

Sempre fiquei encantada com os guardadores de sementes. Quando vejo as comunidades de agricultores familiares seguindo a tradição de guardar sementes, sinto uma onda de respeito me inundar. Respeito pela terra, pelo que generosamente ela nos dá, sem pedir nada em troca, apenas um relacionamento amoroso. Nas sementes mora a vida, não só a vida original da semente, mas também a vida de quem vai planta-las, colhe-las e come-las. Não há nada que me emocione mais do que a fome, a falta de alimento, que é gerado somente pela forma egoísta que organizamos nosso sistema.
Volto para os escravos, os famintos do Nordeste além dos que passam fome ao nosso lado nos centros de nossas grandes cidades.  Um pedacinho de terra, uma semente e um pouco de água, são dádivas que não enxergamos mais. O que vemos são embalagens nos supermercados, água nas torneiras, e comida já pronta, apagando nossa consciência de valores. Guardar sementes, ainda é possível. Cada uma que recolho, quando venta no meu quintal, recolho...  olho profundamente, tento imaginar a vida que ela carrega e me emociono. Muitas vezes planto, mesmo sabendo que o tamanho daquela árvore, caso venha a nascer, não caberá aqui no meu quintal, mas sempre posso doar a mudinhas. Os agricultores, de verdade, doam sementes aos vizinhos, trocam, numa rede amorosa e consciente, num movimento circular da vida. Não é rede, por que rede prende, tem nós. É círculo, em constante movimento.

Tudo isso me fez pensar nos semeadores de ideias, de valores. São outro tipo de agricultores e estão espalhados por todo o mundo. Também trocamos ideias e muitas vezes plantamos sonhos, sem nem nos conhecermos. Vivi a vida a toda ao lado desses agricultores. O plantio não é na terra, é na consciência. Aquelas, que deixaram frestas abertas para receber novas sementes: crianças e adolescentes, pessoas que desconfiam de suas verdades, os curiosos, os que encontram o brinquedo do pensar no playground da vida. Por toda a história da civilização existiram esses agricultores. Muitos deles buscam entradas através dos olhos, outros através dos ouvidos, outros através da mente ou do coração.
Estamos num momento importante para guardar sementes de ideias, além da importância de guardar sementes de feijão, arroz entre outras delícias que a terra nos oferece. Sementes de ideias podem até preservar as sementes originais. Muitas sementes foram plantadas no final do último milênio e nos 10 anos desse milênio. Parecia que caminhávamos para resultados na plantação. Haviam plantadores determinados, água, muitas sementes e muitos brotos que vingavam contra o que destruía a vida. Muita esperança e realização. Os semeadores estavam em postos chaves nas empresas, no governo, nas ONGs, e o círculo circulava, aumentando o nível de informação, casos concretos e realizações de populações excluídas anteriormente.
Muitos consultores falavam ao coração, designs aos olhos, enchendo os ouvidos de novos sons. Isso no mundo todo. Mas estava guardada uma grande tempestade, que não vinha da natureza. Veio de humanos que se sentiam ofendidos com as novas plantações. Ameaçados pelos novos frutos. Foram acumulando raiva e pouco a pouco invadiram o mundo de ódio: ouvidos, olhos, coração, ganharam sons, cores e sensações derramadas por novos atores.  Um suco amargo para o coração. Pouco a pouco acharam frestas nas mentes para falar para muitas pessoas de outros valores. Nem todos tinham frestas na mente, ou nem todos permitiram a entrada desses novos temperos no alimento do nosso coração, olhos, ouvidos ou mentes.
Agora os agricultores de ideias terão mais dificuldade para levar adiante suas plantações. Terão que ser mais criativos, perseverantes. Mas eles continuarão nas organizações que evoluíram, nas pessoas que avançaram e que, mesmo tendo que guardar temporariamente as sementes, estarão atentos às oportunidades, para ir ao galpão de sementes e encontrar suas heranças de aprendizado e a emoção de suas experiências. Assim seguirão os agricultores de ideias, certamente como os fatos estão mostrando, não faltará adubo para mantê-los atentos e firmes na sua função de guardiões de sementes.      
  


2 comentários:

  1. Seus textos mostram que em 2015 o ovo da serpente já tinha eclodido. E me levaram a pensar que esse ovo vinha sendo chocado talvez desde o que chamamos "fim da ditadura" no Brasil. Em muitos países as forças de direita e esquerda se alternam no poder regularmente e há um equilibrio exercido por "centristas" e por uma noção de "bem comum" que permite que se viva em paz. Nesses países há uma mais justa distribuição de riqueza. Quase não há pobreza extrema ou riqueza exacerbada. No Brasil parece que a alternância de poder fica entre períodos de ditadura ou não - ditadura... Há uma classe-média que, flutuando num sonho de ascensão, vem ajudando a implosão dos períodos de não - ditadura dando apoio à implantação de ditaduras pela força de armas em passeatas por deus e família, ou usando os mecanismos democráticos e elegendo ditadores em nome de deus e família... O que acontece depois é o classico: a classe-média que sonhava ascender a uma classe mais alta à custa do aumento da pobreza alheia, descobre que vai virar ela mesma esse "alheio" por decreto. Com uma penada ou duas muitos são jogados na miséria, num desemprego e falta de perspectivas que não esperavam que lhes tocasse a eles, e vão, desiludidos, engrossar a fileira dos desvalidos. A gente vive vidas longas o suficiente para testemunhar as idas e vindas dessa balança que vai de um extremo ao outro sem nunca parar placidamente no meio. Mas a gente parece que nunca vive o suficiente para conseguir promover esse equilibrio, essa paz.

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