UMA SEMANA
Entrava
no banheiro carregando seu próprio peso. Quando a porta se fechava podia deixar
transparecer toda sua dor. Entrava no box, depois do ritual de deixar cair suas
peças de roupa. O maior trabalho era tirar a calcinha. Ainda sentia aquelas
pequenas pontadas na barriga que tentava voltar a seu tamanho normal, depois da
expansão. Parecia que todo o peso do corpo estava nos seios. Naqueles seios
pequenos, bem feitos que tantos elogios haviam recebidos pelos homens que
chegaram até lá. Agora inchados, ardidos, carregavam leite e dor. Ligou o
chuveiro. Bendita água.
Era
um bom chuveiro aquele. A água descia por seu corpo, seus seios. Era bom deixar
correr a água sobre o peito inchado e doído. A água quente parecia derreter o
leite e a dor como um sorvete. Os peitos, como ela os chamava quando estavam
cheios de leite, pareciam se recordar de quando eram seios. Na realidade,
cheios de leite eles ansiavam pela boca
gulosa de um bebê.
Ela pensou em Sofia e um tom nublado invadiu
sua mente. Pegou a bombinha e começou a tirar o leite dos peitos cheios. O
alimento escorria misturando-se à água do chuveiro. As lágrimas escorriam e ela
parecia se melar dos líquidos da vida.
Era
uma longo ritual de prazer e dor. A dor do peito aliviava enquanto se acentuava
a dor da alma. Era no fundo um ritual de limpeza. Precisava recomeçar e
enquanto aquele leite se formasse era quase impossível descobrir algum atalho.
Às vezes ficava muito angustiada de não estar recolhendo aquele leite para dar
a alguma criança viva que precisasse. Mas era pouco... Depois de tudo o leite
havia diminuído, não era o suficiente para doar, talvez se algum bebe estivesse
por perto para sugar e não deixar o leite acabar... Será que suportaria colocar
um bebe agora no seu peito?
Não podia sequer ver um bebê!
Era
como se conseguisse ter contato com um buraco dentro dela que era um fundo de
poço.
Não
dormia mais. Desde aquela manhã suas noites eram observar o sono do parceiro e
fechar os olhos e entrar numa espécie de transe. Olhos. Esse foi um dos transes marcantes.
Eram muitos olhos, de raças diferentes, de idades diferentes. Mas eram também
olhos de planetas diferentes. Olhos de ETS, amendoados ou muito redondos. Eles
desfilavam no escuro do quarto num show de emoções. Olhos abertos, espertos,
chorosos, suplicantes ou até sorridentes.
Ela
levantava, se arrastava para o banheiro, lavava o rosto, sentia a angústia, uma
espécie de suplício, o desejo de dormir, esquecer. Voltava para a cama e
invejava o sono tranqüilo dele. Fechava os olhos e começava a dança dos olhos. Era
uma dança silenciosa, como se toda a humanidade (o universo?) desfilasse seus
olhos para ela. Parecia ouvir o choro distante de um bebê.
Quem estaria alimentando Sofia? O peito doía,
ela virava na cama, virava de bruço e se lembrava que há pouco mais de três
meses era impossível dormir de bruço. Como essa era sua posição preferida para
dormir, tinha aprendido a fazer um buraco na areia da praia e encaixar com
orgulho seu barrigão. A barriga tinha acabado numa linda menina de nariz
arrebitado, que ensinou a ela o que era o êxtase e agora ensinava o que era o
vazio.
O
choro de bebes. Muitos bebês choravam. Ela virava para um lado e para o outro.
Tapava os ouvidos, procurando não fazer barulho para não acordar o companheiro,
afinal ele passara todo o dia sentado na cadeira de balanço que antes servia de
palco para a amamentação, todo vestido de preto, com olhar perdido. Ele
precisava dormir... Mas, ela também queria desesperadamente dormir, se
possível... para sempre.
Os bebes insistiam, choravam de fome. Ela
resolveu se entregar naqueles inúmeros choros, não mais tentar fugir. Difícil
dizer o que sentia no peito, nos seios. Esses latejavam. Ela tinha leite e os
bebês onde estavam? De repente os vários chorinhos angustiados viraram um só, e
aquele choro ela conhecia. Entregou-se por instantes e pouco a pouco se deu
conta do que via.
Uma mulher, uma sereia, toda dourada sorria
para ela. Surpresa, começou a olhar a cena perdendo o espanto e o medo. Afinal
a linda mulher sereia sorria, parecia doce. A cena era de uma total harmonia.
Perdido, no dourado daquele ser, se viam inúmeros bebês. Todos nus, em
movimento, naqueles movimentos de dança dos bebês. Seu olhar foi subindo e lá
estava Sofia nos braços daquele anjo sereia. Mamava tranqüila e transmitia toda
a paz que uma mãe pode desejar a seu bebe.
Sofia
não sofria de fome como tantas crianças no mundo. Estava fora do mundo, naquele
sono súbito que há havia surpreendido. A ela, e a todos, numa bela manhã de
domingo. Estava feliz e talvez a voz que ela havia escutado na segunda–feira
estava certa: Sofia só precisava de pouco tempo, de muito amor. Talvez isso
explicasse o sentimento de agradecimento que às vezes sentia no conflito da
dor. Que eu consiga aprender com isso, pensava ela naquela semana. Sofia foi
muito esperada e amada. Seus seis irmãos tocavam o barrigão, sentiam os
movimentos e depois assistiam, como a um espetáculo, seu primeiro banho, seus
movimentos. Ouviam entusiasmados seus gritinhos. Sofia mudou de freqüência. A
vida dela tinha que poder captar novas freqüências para continuar.
Foi
para um mercado. Os olhos nublados, os seios latejando. Sozinha saiu com o
carro. Foi para a banca de flores, olhou procurando qual delas fazia parte
daquela história. Seus olhos pararam de repente numa florzinha pequena, cor de
rosa. Ela conhecia de passagem, mas nunca havia comprado e nem sabia seu nome.
Com dificuldade pediu ao rapaz, um maço. Ele prontamente atendeu aquela mulher
magra, que há uma semana não conseguia mastigar, só tomava líquidos, e sonhava
com olhos de bebês e sereia. Numa voz pequena, puxada lá das raízes, ela
perguntou: - Qual o nome dessa flor? Ele respondeu distraído no pacote: Sempre
Viva.
Lá
foi ela com sua Sempre Viva a caminho do mar. Estacionou. Desceu na praia e com
as mãos chorando cavou um buraco, não mais para abrigar uma barriga, que como
numa caverna abrigava uma vida, mas para servir de vaso à Sempre Viva. Sentou
na areia e totalmente em silêncio esperou a chegada do barulho do mar com suas
ondas espumantes.
Ela não sabe precisar quanto tempo se passou,
mas o mar chegou. E chegou. Seus olhos fixos nunca perceberam com tanta clareza
o MOVIMENTO. O mar veio. Balançou. Carregou as flores num golpe de onda. Foram
engolidas num segundo, como Sofia, pra algum lugar. Um grito dentro dela, ela
mesma ouviu. Só ela ouviu e sentiu como se uma foice ceifasse seu peito
esquerdo. Era esse o peito que Sofia mais gostava. Toda mãe sabe que seus bebes
tem preferência.
Alguns
bebês são mortos pela ganância, outros pela pobreza, fome, miséria. Alguns
escolhem partir. Vieram só para partir.
Ela
levantou, olhou para o mar, numa mistura de agradecimento e medo e seguiu sem
enxergar até o carro. Chovia em seus olhos.
Seguiu
para casa e sentiu um enorme amor por aquela mulher que amamentava Sofia. Andou
em volta da Lagoa todo o resto da semana. Sentava embaixo de uma árvore e
respirava, só respirava. Um dos dias uma mulher que nunca mais viu, conversou
com ela como se fosse uma grande amiga.
Uma
semana depois resolveu repetir o ritual da praia. Voltou ao mercado, à mesma
barraca e com voz firme pediu: - Uma Sempre Viva, por favor. Um outro rapaz
respondeu que não tinha, haviam acabado. Ela pestanejou e levantou o olhar
pelas prateleiras onde estavam alguns materiais para fazer arranjos e lá no
alto, na última prateleira, havia um maço de Sempre Viva, cor de rosa, já
arrumado para presente. O rapaz, quando informado, subiu na escada para apanhar
aquela flor desejada, reclamando de como ela poderia ter ido parar ali. Ora,
estava esperando.
Ela
sabia que tudo que aprendeu naquela semana seria revisto, revisitado,
reavaliado, revivido por toda sua vida e que os vasos sempre que possível
teriam Sempre Vivas. Ela também descobriu mais tarde que o tempo dessas flores
coincide com o tempo de vida e ida de Sofia, a que estará sempre viva.
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