Publicado no Meio&Mensagem da semana de 2 de junho de 2014.
Conversa de
publicitária
Pensei
no título dessa conversa. Conversa de publicitária contém a dubiedade que me
interessa. Muitos diriam que conversa de publicitário é conversa para boi
dormir. Estamos logo seduzindo e querendo vender alguma coisa. Nesses mais de
40 anos em que atuo no mercado sei que ser publicitária desperta o imaginário
da “mentirosa”, “marketeira”, aquela (e) que consegue dar nó em pingo d’água,
como bom geminiano. Mas pelos meus 40 anos de história no mercado e uma
trajetória de questionamentos, desperto alguma curiosidade. Assim arrisco.
Arrisco tentar falar ao coração dos meus amigos e colegas publicitários e
também aos inúmeros jovens publicitários e jornalistas que têm um ponto de
interrogação no topo da cabeça.
Comecei
trabalhando com comunicação mercadológica no meio da ditadura. Vi o Conar
nascer e apoiei a sua criação. Fui eternamente uma defensora da liberdade de
expressão e da livre comunicação. Ainda em São Paulo, na década de 70, talvez
76/77, fiz uma das minhas primeiras palestras, onde destaquei a frase de um
poeta uruguaio, Mário Benedetti: “Obedecer cegamente deixa cego, crescemos
somente na ousadia.Só quando transgrido alguma ordem o futuro se torna
respirável”. Minha vaga lembrança é que quem me convidou a fazer essa palestra
foi Luiz Grotera. Éramos os dois, duas crianças. Lembro do sucesso. Eu falava
em transformação no mercado. Falava de minha função na agência e que ela não
seria nunca “atender”, mas planejar. Aliás acredito nisso até hoje, apesar de
ainda existirem atendimentos nas agências de publicidade. Mas isso não vem ao
caso. O caso aqui é que continuo vendo a sociedade se transformar, e pela minha
natureza, vou mudando antes mesmo de conseguir entender todo o processo. Afinal
estar na vanguarda, transgredindo, tem seu preço.
A
recente resolução 63 do Conanda – Conselho Nacional da Criança e do Adolescente
que declarou abusiva a comunicação mercadológica para crianças, é certamente um
desses momentos. Como conheço muito bem o território da publicidade, sei o
quanto isso deve estar chocando e incomodando anunciantes e agências. Por isso
resolvi escrever. Nos últimos 15 anos deixamos que a ingenuidade e a alegria da
publicidade se perdesse num mercado cada vez mais “dono do mundo”. A propaganda
para as crianças começou a traduzir nossa vontade de transformá-las em adultos
o mais rápido possível. A inocência nos incomoda. Vivemos o tempo do “resultado” e colocamos
isso como meta nos afazeres executivos de nossas crianças. As mães trabalhando
e a crucial falta de tempo contribui. Natural que a publicidade e os produtos
para crianças respondessem a esse movimento.Colhemos um tempo, que creio,
nenhum de nós assina embaixo. Mas algo ocorre que não conseguimos perceber as
teias que constroem aquilo que não gostamos de ver na nossa sociedade.
Nós publicitários ficamos com nossas conquistas pessoais, com os lucros e
louros colhidos, perdidos de nossa consciência, no louco dia a dia de nossas
vidas.
Para
sair disso é preciso muita coragem. Eu não sei bem como aconteceu, mas ela
começou a me atacar no meio da década de 90. Portanto, já faz muito
tempo! Fui conselheira do Conar até uns seis anos atrás, quando
deixei de ser chamada para as reuniões. Talvez o motivo tenha sido apenas, mais
uma vez, não seguir a maioria e passar a refletir. Também entraram no meu
escritório cassando meu direito de agência, porque eu não veiculava, apenas
planejava. A intensa competitividade dos publicitários para ganhar clientes se esvanece
na constituição de chapas para as associações do mercado, que se substituem.Nunca
temos eleições, são sempre chapas únicas, não há debates, discordâncias. Isso é
tão forte que levamos 30 anos para fazer um congresso e na sua realização não
existiram ideias em debates, apenas acordos. Há uma união na defesa do negócio
imediato, no status quo, que faz com que nossa tão falada criatividade resulte
numa imensa neblina para nossos modelos de gestão, para os modelos
operacionais, para nossas filosofias de trabalho.
Eu
apenas continuo precisando refletir e necessitando de espaços inteligentes de
debates de ideias. Intensifiquei minhas reflexões sobre o que se passa conosco
e com a sociedade e, claro, fui encontrar novos espaços que permitissem que eu
seguisse minha natureza. Comecei a perceber que a sociedade mudava e mudaria
muito. Percebi também que nós publicitários temos um medo avassalador de mudar.
Até porque não basta a nossa mudança, as empresas teriam que nos aceitar,
mudados, para conseguirmos continuar vivos. As pressões sobre nosso
mercado só aumentaram. As tristes realidades sobre o planeta e a sociedade se
intensificaram.
Pensar
e mudar será a única forma de enfrentar as inúmeras pressões que afetam nossa
reputação. O mercado sabe que não haverá solução. As empresasterão que
desenvolver novos produtos, os publicitários vão ter que investir em novas
linguagens, o que hoje já acontece de maneira tímida, mas quem está ganhando no
imediato resiste a perceber as perdas, ainda maiores, apontadas no futuro. Isso
acontece com tudo: com alimentos (e agora os frangos não têm hormônio), com
novas soluções de energia, com sucos, com alimentos sem glutem, sem lactose,
com o fascínio pelas bicicletas, com arroz e feijão no MacDonalds, com produtos
de todas as categorias. A visão do lucro é sempre a curto prazo, nem que a
longo prazo estejamos afetando a vida do planeta, a nossa saúde, a de nossa
sociedade, e pior, a nossa felicidade.
Temos futuro. Porque
tudo foi sempre mudando. Com cigarros não foi assim? Nós, que tanto sabemos
fazer pelo consumo, podemos conferir um papel estratégico ao nosso
trabalho e ajudar na construção do inevitável futuro, apressá-lo, vender os
novos valores.Planejamento não perde sua função. Sabemos seduzir e podemos
seduzir para novos resultados. Criança é um assunto sério. Não adianta dizer
que cada família resolve. As notícias estão aí nos mostrando as feridas que a
comunicação (não só a publicidade, mas toda ela), a falta de políticas públicas,
a pouca seriedade com as boas políticas existentes e os produtos que resolvemos
vender com excesso de açucar ou sódio estão desenvolvendo. Construímos os valores das famílias, das
escolas, das nossas ruas. Com toda liberdade. Mas a liberdade contém responsabilidade.
Temos novas tribos atuantes no mercado e armadas com as redes sociais. É nossa
responsabilidade mostrar essa nova realidade para nossos clientes. A sociedade
começa a dizer não. Não vai parar de consumir, só é mais informada e mais autônoma do que nas décadas
anteriores. Se “ouvirmos”sem medo o que pensam os interlocutores, analisarmos
as informações disponíveis sobre nossos desafios econômicos, sociais e
ambientais não há saída, temos que nos transformar.
Precisamos
assimilar que o consumidor virou interlocutor e tem um poder imenso,
porque de várias formas ele é publicitário e jornalista. No dia a dia, no
Conar, nas nossas pesquisas, que vão ajudar nossos clientes a vislumbrarem como
ter reputação de marca, podemos fazer diferente. Ajudar a construir o país que
desejamos pode não mais parecer uma tarefa pouco importante para os profissionais de comunicação. As
mudanças não vêm pela resolução do Conanda, mas sim o Conanda
traduziu uma sociedade que quer fazer novas escolhas, escolhas mais
conscientes. A decisão simples de cumprir nossa Constituição, artigo 227:
criança prioridade absoluta.
Sei que talvez
para muitos eu seja, como sempre, uma sonhadora, mas preciso reafirmar a
coerência de minha trajetória, até porque não me sobra todo o tempo. O
compromisso dos negócios do futuro, da comunicação mercadológica, será a
manutenção da vida no planeta. A emergência será cada vez maior. Não porque eu
queira, mas porque exageramos em tudo. Consumimos tudo. Precisamos plantar
vida, educação, comprometimento, responsabilidade. Se me permitirem, continuo a
ser publicitária. Continuarei a me perguntar porque não há debates para as
eleições de chapas para as instituições do mercado. Continuarei a me
perguntar porque nenhuma mulher até hoje foi eleita como presidente dessas
instituições, quando são cerca de 70% das trabalhadoras do mercado. Ou por que
não chegam ao comando das agências. Pergunto com liberdade porque cheguei até
aqui, e aqui o poder não faz mais sentido.
Minha vida está
dedicada ao aprender, entender e agir onde eu puder. E eu aprendo com os
jovens, que não têm vergonha de buscar o empreendedorismo, os hubs, a
co-criação, o crowd- funding, com coragem para se manifestar. Eles que
estão criando novos modelos de comunicação no mercado. Aposto na
possibilidade de um novo Conar, que seja vanguarda outra vez. Aposto numa nova
comunicação que venda, mas sem precisar deseducar. Novos empresários, que
criem novos alimentos. Novos brinquedos.
Arquitetos que criem novas casas, espaços públicos, com compromisso com
a mobilidade urbana, um novo jornalismo. Novo mundo.
Essa é a minha
conversa. Uma nova conversa. Como somos resistentes a mudanças, apenas um passo
poderá representar muito. A resolução do Conanda não é lei?
Estejam certos de que o mais importante é que ela chega e aumenta a massa
crítica de ideias que começaram pequenas nos últimos 10 anos. As redes se organizam, é só pesquisar as
famílias que buscam novos modelos de vida. Descobriremos que um novo mundo está
emergindo no desejo dos interlocutores. O tempo da
publicidade massacrante, que não conversa, que não olha pelos mais fracos, e
não são só as crianças, está chegando no seu limite. Os pais que vivem um
momento de imensa dificuldade para educar seus filhos, não vão se calar.Querem
conversar.