quinta-feira, 2 de outubro de 2014


                                                                        O toco

                                                     (da série contos do trabalho)

Lembrei do toco. Conheci o homem do toco, ao mesmo tempo, que conheci Eduardo Campos. Nem podia imaginar que ele explodiria anos depois.  Lembro de vê-lo chegando ao evento que conversava sobre os desafios de SUAPE, de mãos dados com sua esposa. Lembro de ter comentado com meu cliente da Petrobras, mais precisamente da Refinaria Abreu e Lima, que era estranho ver um político chegar sorridente de mãos dadas com sua esposa. Fui apresentada a ele e a Renata, aquelas apresentações formais que marcam mais quem conhece do que quem é conhecido. Algo me impactou. Era só o começo. No evento ele falou, é claro. Era um momento importante do seu primeiro governo em Pernambuco. A Refinaria, mágica, chegava como proposta a Pernambuco, uma promessa antiga de um cônego que declarou que, se ela chegasse Pernambuco, tudo mudaria ali e no nordeste inteiro.  Intenso período na história onde Lula, um pernambucano abraçava sua terra. Escutei seu discurso e numa premunição disse ao meu cliente: - Ele será candidato à Presidente da República, não sei se em 2014 ou 2018! Não sei explicar por que, mas ali senti que estava frente a um olhar que tinha futuro. Um olhar verde, ou azul em Pernambuco, terra que produziu muitas histórias nesse país.  A história escreveu a história de nova maneira e hoje temos Marina candidata e a refinaria enumerando corrupção e agressão ao meio ambiente. Espantosamente ainda não funcionando!

Mas, eu acabava de mergulhar mais uma vez naquela bandeira, que carrega um arco-íris. Pernambuco. Foram anos de convivência com um povo extraordinário. Um impacto. Não sabia que no dia seguinte ia conhecer o homem “do toco” na praia. Um desconhecido, com nenhuma “celebridade”, mas inesquecível para mim.

Na sobra de alguns instantes daquela louca jornada de entrevistas com ONGs, comunidades, colaboradores e líderes de várias instituições, naquele importante momento de Pernambuco, eu consegui chegar à areia para sentir o movimento do senhor líquido da terra: o mar. E eu ali me fascinava como carioca (será que paulista?) na descoberta desse território. Naquelas águas misturavam-se as experiências do dia, os clientes, os amigos, um fan club, que tinham inventado para mim. As ONGs conhecidas e admiradas, meus amigos! Mas sobrou um tempo!  Pouco tempo. Bastou atravessar a rua e lá estava eu naquele mar de tubarões, que me enganava na sua fantástica beleza e águas quentes! Tubarões de Suape, agora eu sabia. Erros e erros antigos, que fizeram mal aos mares da beira mar.

Sentei e lá fiquei com meu olhar perdido no mar! Adoro! De repente ouvi uma voz ao meu lado que chegou a me assustar: A senhora quer um pau’ água? Olhei curiosa o “pau” que ele carregada numa das mãos. Outros pareciam guardados num saco plástico. Eu lá sabia o que era um pau d’ água? Pois é. Ele me explicou. “Olha eu sustentei todos os meus filhos vendendo esses paus d’águas, a senhora pode levar, eles vão nascer. Pode confiar! A senhora ponha na água e terá uma linda planta para toda sua vida’. Eu olhei para sua cara, marcada pelo sol, pelas caminhadas na praia, para o pedaço de toco na sua mão... Pensei na minha imensa ingenuidade em crer... Sorri, pedi que me contasse mais. Ele sentou do meu lado na areia e menos de cinco minutos depois eu já era proprietária de um toco! Cinco reais! Um toco! Volto para o Rio com o toco, com um pau d’água afinal, esses tocos só podiam ser mágicos já que permitiram àquele homem alimentar todos seus filhos! Cinco reais! Cheguei a minha casa e segui as instruções daquele homem, de cara marcada por rugas fundas de sol. Era simples, “água num vaso cobrindo um terço do toco, e aguarde!”

E lá ficou o toco. Todos querendo jogar fora o toco, por que nada acontecia... Um pau, um toco na água. Meses a fio! “D. Nádia posso jogar isso fora?” Não, gritava eu! Vai nascer! E elas, minhas ajudantes, olhavam para mim com a condescendência do amor. Coitada dessa moça que fica aí, com um toco na água, acreditando, em quê mesmo? Eu simplesmente não podia deixar de acreditar naquele homem marcado, naquele pernambucano que tinha me descoberto, naquele governador estranho que andava de mão dada com a mulher, de olhos claros no cenário escravocrata do sertão, naquelas comidas especiais, naquelas pontes, naquela Olinda que tinha aprendido a descobrir e amar depois de tantas viagens para lá! Naquele Suape, nos municípios que seriam tão impactados pelo tal do progresso que a Petrobras, imagine, com a Venezuela, estariam levando para a região. Não. Eu acreditava menos na Abreu e Lima, com a Venezuela, do que no homem do toco.

Continuei a colocar água no vaso de vidro, mesmo que nada acontecesse por mais de um ano! Não estava errada. O toco começou a produzir raízes. Deu folhas. Eduardo Campos chegou a ser candidato em 2014. A Refinaria Abreu e Lima, não vingou com os venezuelanos. Patina em tristes histórias. O impacto está lá para quem tem olhos para ver. Mas uma linda história chegou para mim: o toco. Está comigo até hoje, e claro não é mais toco, só raízes que descansam na água e uma folhagem que ficou como a lembrança daquele homem que cumpriu sua promessa.

 Contei essa história por que o homem do toco, talvez continue ali pelas praias da beira mar e você possa cruzar com ele, e eu te digo, tenha fé, o toco brota, olhe a foto! Ele está aqui comigo até hoje! Podemos pensar que outros tocos brotarão. Como o toco que floresceu quando pode, quando quis. Talvez o toco possa florescer de outra forma, na mão de quem sabe bem fazer florescer, ainda agora em 2014. A mão do destino faz tocos florescerem, basta ter fé no toco. Deixo o resto do toco para você!
 


Frutos da semeadura

 Simbólico um livro sobre a Ação da Cidadania, que completa 20 anos, quando o Brasil discute sua democracia. Betinho falava da cidadania como ondas do mar, quando ausentes estão ganhando força e energia, para se transformar em novas ondas. Essa é a história contatada no livro desses 20 anos de luta pela conquista de direitos, que começou pelo essencial: direito à alimentação. O livro começa em 1964. Fala da volta de Betinho ao Brasil, da Constituinte, das Diretas Já, do lançamento da Ação da Cidadania no governo Itamar Franco, que pela primeira e única vez ofereceu o horário exclusivo do governo brasileiro na TV para que Betinho e Dom Mauro Morelli lançassem o movimento em Rede Nacional.

O movimento despertou milhares de voluntários que se organizaram em comitês. A pergunta era: qual é seu comitê? Eu coordenei o comitê de publicitários e no livro estão os anúncios, os filmes criados e produzidos, de forma voluntária e veiculados pela TV Globo e demais emissoras, editoras. Mais de 30 spots foram ao ar durante os seis anos. O livro fala da nova liderança de Maurício de Andrade, após a morte de Betinho em 1997, do foco do trabalho: o Natal sem Fome. Os resultados estão no número de voluntários que atuam em todo o Brasil, no trabalho de ONGs, muitas que nasceram naquele período, na política pública que praticamente venceu a fome no Brasil. O livro mostra imagens desses cidadãos, numa direção de arte primorosa de Jair de Souza.

 

No lançamento da campanha, em 1993, Betinho disse: “Essa é uma campanha que quer sim mudar o rumo do Brasil. Não o Brasil para uma minoria, mas para todos!” Nem ele, nem Maurício Andrade teriam dificuldades para entender os jovens ou a tecnologia, redes de convivência e articulação. Betinho voltou do exílio com Carlos Afonso lançou o Alternex, o primeiro provedor à Internet do Brasil. Betinho costumava dizer “que governo só anda quando empurrado”. Seu partido eram os cidadãos livres, fazendo “sua parte”. Acreditava na capacidade autônoma dos indivíduos, na força maior que coloca jovens, como ele foi um dia, a serviço de criar um mundo melhor.

Hoje a equipe da Ação da Cidadania atua nacionalmente a partir de um armazém que carrega a história do Rio de Janeiro. Mais de 200 comitês ativos. A necessidade de apontar para o futuro, curiosamente coloca juntos Daniel de Souza, filho de Betinho e Rodrigo Afonso, o Kiko, filho de Carlos Afonso, um dos fundadores do Ibase junto com Betinho e Marcos Arruda. Estão construindo com empresas parceiras programas de inclusão digital, buscando diminuir o fosso que divide os mais ricos dos mais pobres. A rede de solidariedade focará agora na exclusão de direitos, a desigualdade social.

A Ação da Cidadania foi uma experiência da democracia, uma expressão da diversidade da sociedade, trouxe cidadãos e cidadãs para a arena política, com voz, poder e participação. Inspiradora, trouxe mudanças fundamentais para pessoas, para o governo e para as empresas, que foram convidadas pela primeira vez a agir. Introduziu a solidariedade estimulando conquista de direitos. Inovadora, despertou o engajamento da cultura e dos profissionais de comunicação.

Na Ação da Cidadania todos viram mestres. Não há autoridade, há um chamado, uma convocação para a ação. Lendo o depoimento dos participantes dos comitês, fica claro que o convite de Betinho foi para uma ação coletiva, apaixonada, volátil e viva, que educa e desenvolve a autoestima.

... Ação da Cidadania, criando comitês, comitês autônomos, independentes, suprapartidários, criativos, concretos. Que sejam capazes de identificar os problemas, propor soluções e serem capazes de trabalhar sem esperar nada, sem esperar ordens, sem esperar verticalismo, burocracia, centralização. (...), se o Brasil for capaz de criar milhares desses comitês em todas as cidades, o Brasil vai mudar de rumo. O Brasil vai ser outro.” (Betinho)

Foi uma nova forma de criar lideranças, mudar modelos mentais, abandonar velhos preconceitos. Educar para a cidadania é educar para consciência, que nos habilite a enfrentar os desafios econômicos, ambientais e sociais. Betinho, o animador da Ação da Cidadania, está entre nós, quando escolhemos empurrar o mundo na direção de mais direitos e menos injustiças.  

Quem sabe essa história, agora registrada em livro, não é mais um voar do beija flor que conquistará aprendizes na semeadura de mais e mais cidadania?

quinta-feira, 18 de setembro de 2014


  Um novo você!

 
Sonhe...! Nunca deixe de sonhar, nunca se esqueça de sonhar!

Não seja apenas uma criatura, uma vítima... Seja um CRIADOR

Deixe para lá a criatura e sinta sua potência de criador.

Na natureza não há vítimas, mas sim uma constante dança, trocas, conexões. Tudo em constante busca de equilíbrio.

A dança da vida, com todas suas forças em marcha! Inclusive as suas! Você já pensou que está cheio de forças em marcha? Seja como a natureza, deixe acontecer, faça acontecer! Empreenda!

Inspire-se nas sementes que se espalham. Na flor que se abre. Na lagarta que se transforma E coloque uma borboleta no seu olhar! Perceba a força de um oásis. Das árvores tão generosas que atraem os pássaros. Das matas que insistem em existir mesmo com toda depredação!  Das novas idéias que, a favor e com a força da natureza, nos ensinam novas formas de viver.

Com isso estamos criando novos negócios, novas moedas, um novo mundo!

Faça. Não precisa ninguém estar olhando para você. Basta você se olhar, como parte da natureza criadora. E... se olhando você verá sua força, sua potência, sua alegria... Vida! E a capacidade enorme de multiplicação, de regeneração! Sonhe com a construção do novo mundo, com a sua participação. Com a sua energia. Você vai contaminar outros, e outros... e mais outros...

Revele o criador que está ai, escondido às vezes, mas está aí, bem dentro de você... Pronto para te inspirar! Alimente criação. Inspire criação. Seja um protagonista. Integre-se com a natureza.

 Seja você mesmo uma folha. Já reparou como as folhas são únicas e diversas na natureza?  Não há uma igual a outra, por isso uma paisagem é tão, alegre e enfeitada!

Descubra qual é seu tipo de folha. Abra seus olhos! Abra seu coração! Abra o seu observador! Contate sua potência. Inspire-se Criador, na mais linda das criações! A menina terra! Seja como a gota d’água, faça com que o movimento se espalhe, em círculos!

Pedras no caminho? Guarde-as, como nos ensinou Fernando Pessoa. Com elas você poderá construir seu próprio castelo. Tenha certeza que ele será único e que... só você, pode construí-lo! A força de vontade é indomável!

 

 

sábado, 13 de setembro de 2014


O Ponto de Mutação

Há muitos anos, por volta de meados da década de 80, entrei em contato com os autores que me levaram a caminhar para os novos paradigmas da civilização. Me lembro, como se fosse hoje, o prazer que senti. A sensação de empatia foi tão forte, que apesar de muitos autores eu não ter conhecido pessoalmente, sinto como se eles fossem meus amigos íntimos. Um deles foi Frijot Capra. A leitura do livro O Ponto de Mutação que se remete a um hexagrama do I ching que já era meu velho conhecido, revelou-se como pingos de esperança para eu chegar até aqui. No entanto,  naquele momento, não pensei que fosse tão difícil e tão lento o avanço da civilização. Pura ingenuidade minha. Talvez eu nem veja os maiores acordes dessa transformação. Ao longo do tempo me conformei que a minha geração só vai ver a ponta do iceberg.

Aí também compreendi que só poderia, e posso seguir, ficando consciente dos dois P’s: paciência e perseverança. Apesar de perceber o caminho, não podia imaginar, à aquela altura, o impacto da tecnologia, que trouxe ferramentas para os avanços, mas intensificou a complexidade. O paradigma sistêmico, ainda engatinha. Poderia falar muito sobre seu lento avanço em várias áreas, mas meu foco é comunicação, e por isso nela fico.

Comecei a falar de comunicação integrada nesses tempos, década de 90. Intensifiquei minha busca pelos desafios da comunicação interna, já que vinha de publicidade e pouco a pouco fui percebendo sua imortância. Comecei a perceber a pequenez de pensar apenas a publicidade. Isso já me colocou em crise com a  agência que trabalhava. Comunicação interna  não dava lucro, diziam. Sim, e frente a publicidade que área de comunicação dá lucro? Esqueça isso, me diziam. Foquei no planejamento, só ele me permitiria aprender a pensar sistemicamente. Comunicação interna, comunicação  face a face, foram ganhando força para mim, Afalta de atenção a ela  tira o lucro das empresas. Essa conta nunca foi feita, mas é bárbaro o que o ambiente interno das organizações é capaz de fazer.

Logo a seguir fui tocada pelas questões sociais, pela importância da educação e pude ter experiências incríveis, percebendo um papel para a comunicação que foi deixando a publicidade reduzida a seu lugar, um dos processos possíveis para o uso da comunicação, o mais lucrativo deles para as agências. Assim a minha opção exigiu desapego. Profissionais e pessoais. O quanto bendigo ter sido capaz de desapegar para poder enxergar por onde a comunicação poderia contribuir de forma decisiva para as conquistas de novos paradigmas civilizatórios.

O que penso ainda está muito distante do que consigo realizar. No entanto a cada passo dou um sorriso. Aprendi que só tem sentido a vida que tem sonho. Conseguir pensar em comunicação integrada e vendê-la, passou a ser estratégico. Às vezes até é fácil, muitas empresas estão percebendo a necessidade brutal de integração. A comunicação face a face que nem sequer existia como processo há alguns anos, ganhou uma enorme força. A responsabilidade social (saiu de sua caixinha e ganhou a dimensão de reputação de marca) Agora tudo está aí... e caminha. A ferramenta é o planejamento. O motivo é pensar em organizações como mais um espaço para a educação, para o desenvolvimento humano. E eu muitas e muitas vezes sorrio. Mesmo sabendo que a nova geração, quando já não for tão nova assim, colherá os produtos orgânicos de uma comunicação integrada que muitos de nós plantamos.

O Ponto de Mutação às vezes é reticência, às vezes interrogação, mas um dia será exclamação.

sexta-feira, 18 de julho de 2014

Entranhas Falam


                                   Entranhas falam. Sempre alguns escutam.

                                                                            (da série Contos do trabalho)
                                                                                   Original publicado no site da ABERJE.

Corri o dia todo. Vinha de outros estados e cidades. Aprendia pouco a pouco a ouvir. Tudo muito diferente. Vidas, expectativas completamente diversas das do meu dia a dia.  Afinal eu sempre trabalhei atrás de uma mesa. Com papéis, canetas e lápis. Mais tarde com computadores. Como compreender quem trabalha com o “pesado”? Fogo, trilhos, navio, mato, perigo de acidentes, desastres? Em mim às vezes dói a cabeça, para eles o que dói é a coluna, o joelho, o braço.  A mente parece se apagar e reflete no corpo e no coração.

Mas tudo bem. Cheguei e fui para um hotel muito mais ou menos, mais menos que mais. A cidade lá fora quieta. Seus moradores dormem cedo porque acordam cedo. Trabalho físico. Corpo suado. Muitas vezes debaixo de 35/40 graus. Abaixa, levanta! A roupa que protege é pesada e sufoca. Uma vez um diretor, dessa empresa, me disse que gostaria de ver esses trabalhadores de uniforme branco. Olhei para ele como se para um ET! Será que nunca tinha ido lá, onde eles trabalhavam? A possibilidade empática nunca havia se oportunizado?

Sei que ele não foi, de verdade. Ele realmente esteve lá sim, algumas poucas vezes, desde que assumiu o cargo de Diretor. Rápido como convém a um chefe. De carro, com algum gerente dirigindo. Doava algumas palavras e nenhum dos dois ouvidos. As palavras não deixavam vestígios no sentir dos empregados, apenas ordens racionais. Sempre no fechamento do discurso entrava um: “muito obrigada, conto com vocês!” Afinal o certo era ir á área operacional, momento de plena generosidade, mesmo que correndo, apressado.  

Quando as coisas não iam bem e podiam afetar avaliações e bônus, rapidamente criava-se um novo processo. Os engenheiros adoram planilhas, manuais e cartilhas. Tem a ilusão, que com isso, estão controlando a vida, as emoções, o pensamento. Recebem como recompensa, e ficarão felizes, 70% de preenchimento do processo no sistema e eles nem se dão conta de que as planilhas estão vazias de comprometimento.

E ele fazendo seu discurso. Os trabalhadores continuaram a olhar para ele, aquele que vivia num outro planeta. Alguns humildes, acostumados, outros roendo suas revoltas no silêncio absoluto da obrigação do pão, do macarrão, da educação dos filhos. Suavam lágrimas enquanto o estômago queimava.

Cheguei à área operacional, vendo tudo, com aquela minha imensa vontade de compreender. Estava combinado que 12 empregados estariam ali para participar de uma reunião comigo. Mas, não paravam de chegar! Não fechei a porta e deixei que viessem. Pareciam, desesperadamente precisar falar. Eu tinha espaço para ouvir e, como um maestro, dei chance ao diálogo! Tentei dar a oportunidade para todos tocarem seus instrumentos. A música tinha a harmonia do sofrimento que se consolidou na abertura do sanduíche, que um deles resolveu me mostrar: pão seco com uma tira ressecada de presunto, somada a outra fatia ressecada de queijo. Engoliam assim em silêncio o duro trabalho do dia a dia, tentando entender as manchetes dos jornais que alardeavam os lucros da empresa.  E eu estava ali fazendo algo muito inusitado: escutando e tomando notas.

No meio dos 24 empregados, que acabaram formando o grupo na sala, um dos operários respondeu à minha sugestão para desenhar (criar uma imagem que simbolizasse como se conversava na empresa), com uma felicidade inusitada: - “Esperei toda minha vida para fazer esse desenho!” Pegou o papel e a caneta pilot, como talvez nunca tenha feito quando garoto, e desenhou a si mesmo dividido: de um lado de seu corpo via-se o uniforme do trabalho, a outra metade era seu corpo... por dentro. Veias e músculos apareciam como nos desenhos de Alex Grey, o artista plástico.  Eu podia ver essa metade viva do corpo, a pulsar! Carregando vida, ele procurava me mostrar que existia, que debaixo do uniforme guardava ainda sua identidade.

Peguei aquele desenho sentindo que ele carregava transformação. Era tão verdadeiro e simbólico que rodou no computador de muitos engenheiros, gerentes e diretores sensíveis e das equipes de comunicação que, naquela devolutiva de diagnóstico, ainda escutaram a frase: “A comunicação da empresa é ótima, mas falta coração nas palavras!” Pingou esperança.

terça-feira, 3 de junho de 2014

Publicado no Meio&Mensagem da semana de 2 de junho de 2014.

Conversa de publicitária
Pensei no título dessa conversa. Conversa de publicitária contém a dubiedade que me interessa. Muitos diriam que conversa de publicitário é conversa para boi dormir. Estamos logo seduzindo e querendo vender alguma coisa. Nesses mais de 40 anos em que atuo no mercado sei que ser publicitária desperta o imaginário da “mentirosa”, “marketeira”, aquela (e) que consegue dar nó em pingo d’água, como bom geminiano. Mas pelos meus 40 anos de história no mercado e uma trajetória de questionamentos, desperto alguma curiosidade. Assim arrisco. Arrisco tentar falar ao coração dos meus amigos e colegas publicitários e também aos inúmeros jovens publicitários e jornalistas que têm um ponto de interrogação no topo da cabeça.
Comecei trabalhando com comunicação mercadológica no meio da ditadura. Vi o Conar nascer e apoiei a sua criação. Fui eternamente uma defensora da liberdade de expressão e da livre comunicação. Ainda em São Paulo, na década de 70, talvez 76/77, fiz uma das minhas primeiras palestras, onde destaquei a frase de um poeta uruguaio, Mário Benedetti: “Obedecer cegamente deixa cego, crescemos somente na ousadia.Só quando transgrido alguma ordem o futuro se torna respirável”. Minha vaga lembrança é que quem me convidou a fazer essa palestra foi Luiz Grotera. Éramos os dois, duas crianças. Lembro do sucesso. Eu falava em transformação no mercado. Falava de minha função na agência e que ela não seria nunca “atender”, mas planejar. Aliás acredito nisso até hoje, apesar de ainda existirem atendimentos nas agências de publicidade. Mas isso não vem ao caso. O caso aqui é que continuo vendo a sociedade se transformar, e pela minha natureza, vou mudando antes mesmo de conseguir entender todo o processo. Afinal estar na vanguarda, transgredindo, tem seu preço.

A recente resolução 63 do Conanda – Conselho Nacional da Criança e do Adolescente que declarou abusiva a comunicação mercadológica para crianças, é certamente um desses momentos. Como conheço muito bem o território da publicidade, sei o quanto isso deve estar chocando e incomodando anunciantes e agências. Por isso resolvi escrever. Nos últimos 15 anos deixamos que a ingenuidade e a alegria da publicidade se perdesse num mercado cada vez mais “dono do mundo”. A propaganda para as crianças começou a traduzir nossa vontade de transformá-las em adultos o mais rápido possível. A inocência nos incomoda.  Vivemos o tempo do “resultado” e colocamos isso como meta nos afazeres executivos de nossas crianças. As mães trabalhando e a crucial falta de tempo contribui. Natural que a publicidade e os produtos para crianças respondessem a esse movimento.Colhemos um tempo, que creio, nenhum de nós assina embaixo. Mas algo ocorre que não conseguimos perceber as teias que constroem aquilo que não gostamos de ver na nossa sociedade.  Nós publicitários ficamos com nossas conquistas pessoais, com os lucros e louros colhidos, perdidos de nossa consciência, no louco dia a dia de nossas vidas.
Para sair disso é preciso muita coragem. Eu não sei bem como aconteceu, mas ela começou a me atacar no meio da década de 90. Portanto, já faz muito tempo!  Fui  conselheira do Conar até uns seis anos atrás, quando deixei de ser chamada para as reuniões. Talvez o motivo tenha sido apenas, mais uma vez, não seguir a maioria e passar a refletir. Também entraram no meu escritório cassando meu direito de agência, porque eu não veiculava, apenas planejava. A intensa competitividade dos publicitários para ganhar clientes se esvanece na constituição de chapas para as associações do mercado, que se substituem.Nunca temos eleições, são sempre chapas únicas, não há debates, discordâncias. Isso é tão forte que levamos 30 anos para fazer um congresso e na sua realização não existiram ideias em debates, apenas acordos. Há uma união na defesa do negócio imediato, no status quo, que faz com que nossa tão falada criatividade resulte numa imensa neblina para nossos modelos de gestão, para os modelos operacionais, para nossas filosofias de trabalho.
Eu apenas continuo precisando refletir e necessitando de espaços inteligentes de debates de ideias. Intensifiquei minhas reflexões sobre o que se passa conosco e com a sociedade e, claro, fui encontrar novos espaços que permitissem que eu seguisse minha natureza. Comecei a perceber que a sociedade mudava e mudaria muito. Percebi também que nós publicitários temos um medo avassalador de mudar. Até porque não basta a nossa mudança, as empresas teriam que nos aceitar, mudados,  para conseguirmos continuar vivos. As pressões sobre nosso mercado só aumentaram. As tristes realidades sobre o planeta e a sociedade se intensificaram.
Pensar e mudar será a única forma de enfrentar as inúmeras pressões que afetam nossa reputação. O mercado sabe que não haverá solução. As empresasterão que desenvolver novos produtos, os publicitários vão ter que investir em novas linguagens, o que hoje já acontece de maneira tímida, mas quem está ganhando no imediato resiste a perceber as perdas, ainda maiores, apontadas no futuro. Isso acontece com tudo: com alimentos (e agora os frangos não têm hormônio), com novas soluções de energia, com sucos, com alimentos sem glutem, sem lactose, com o fascínio pelas bicicletas, com arroz e feijão no MacDonalds, com produtos de todas as categorias. A visão do lucro é sempre a curto prazo, nem que a longo prazo estejamos afetando a vida do planeta, a nossa saúde, a de nossa sociedade, e pior,  a nossa felicidade.
Temos futuro. Porque tudo foi sempre mudando. Com cigarros não foi assim? Nós, que tanto sabemos fazer pelo consumo, podemos conferir um papel estratégico ao nosso trabalho e ajudar na construção do inevitável futuro, apressá-lo, vender os novos valores.Planejamento não perde sua função. Sabemos seduzir e podemos seduzir para novos resultados. Criança é um assunto sério. Não adianta dizer que cada família resolve. As notícias estão aí nos mostrando as feridas que a comunicação (não só a publicidade, mas toda ela), a falta de políticas públicas, a pouca seriedade com as boas políticas existentes e os produtos que resolvemos vender com excesso de açucar ou sódio estão desenvolvendo.  Construímos os valores das famílias, das escolas, das nossas ruas. Com toda liberdade. Mas a liberdade contém responsabilidade. Temos novas tribos atuantes no mercado e armadas com as redes sociais. É nossa responsabilidade mostrar essa nova realidade para nossos clientes. A sociedade começa a dizer não. Não vai parar de consumir, só é mais informada  e mais autônoma do que nas décadas anteriores. Se “ouvirmos”sem medo o que pensam os interlocutores, analisarmos as informações disponíveis sobre nossos desafios econômicos, sociais e ambientais não há saída, temos que nos transformar.
Precisamos assimilar que o consumidor virou interlocutor e tem um poder imenso, porque de várias formas ele é publicitário e jornalista. No dia a dia, no Conar, nas nossas pesquisas, que vão ajudar nossos clientes a vislumbrarem como ter reputação de marca, podemos fazer diferente. Ajudar a construir o país que desejamos pode não mais parecer uma tarefa pouco  importante para  os profissionais de comunicação.  As mudanças não vêm pela resolução do Conanda, mas sim o Conanda traduziu uma sociedade que quer fazer novas escolhas, escolhas mais conscientes. A decisão simples de cumprir nossa Constituição, artigo 227: criança prioridade absoluta.
Sei que talvez para muitos eu seja, como sempre, uma sonhadora, mas preciso reafirmar a coerência de minha trajetória, até porque não me sobra todo o tempo. O compromisso dos negócios do futuro, da comunicação mercadológica, será a manutenção da vida no planeta. A emergência será cada vez maior. Não porque eu queira, mas porque exageramos em tudo. Consumimos tudo. Precisamos plantar vida, educação, comprometimento, responsabilidade. Se me permitirem, continuo a ser publicitária. Continuarei a me perguntar porque não há debates para as eleições de chapas para as instituições do mercado. Continuarei a me  perguntar porque nenhuma mulher até hoje foi eleita como presidente dessas instituições, quando são cerca de 70% das trabalhadoras do mercado. Ou por que não chegam ao comando das agências. Pergunto com liberdade porque cheguei até aqui, e aqui o poder não faz mais sentido.
Minha vida está dedicada ao aprender, entender e agir onde eu puder. E eu aprendo com os jovens, que não têm vergonha de buscar o empreendedorismo, os hubs, a co-criação, o crowd- funding, com coragem para se manifestar. Eles que estão criando novos modelos  de comunicação no mercado. Aposto na possibilidade de um novo Conar, que seja vanguarda outra vez. Aposto numa nova comunicação que venda, mas sem precisar  deseducar. Novos empresários, que criem novos alimentos. Novos brinquedos.  Arquitetos que criem novas casas, espaços públicos, com compromisso com a mobilidade urbana, um novo jornalismo. Novo mundo.
Essa é a minha conversa. Uma nova conversa. Como somos resistentes a mudanças, apenas um passo poderá representar muito. A resolução do Conanda não é lei? Estejam certos de que o mais importante é que ela chega e aumenta a massa crítica de ideias que começaram pequenas nos últimos 10 anos.   As redes se organizam, é só pesquisar as famílias que buscam novos modelos de vida. Descobriremos que um novo mundo está emergindo no desejo dos interlocutores. O tempo da publicidade massacrante, que não conversa, que não olha pelos mais fracos, e não são só as crianças, está chegando no seu limite. Os pais que vivem um momento de imensa dificuldade para educar seus filhos, não vão se calar.Querem conversar.



quarta-feira, 9 de abril de 2014

Flavio é meu colega no Conselho do Instituto Alana. Esse artigo pode falar com vários publicitários, alguns jovens começando na profissão, que querem entender os perigos da propaganda para crianças! Boas reflexões!


Infância livre de publicidade (Jornal O POVO, Vida & Arte, 09/04/2014)

Infância livre de publicidadeArtigo publicado no Jornal O POVO, Caderno Vida & Arte, pág.4Quarta-feira, 09 de abril de 2014 - Fortaleza, Ceará, Brasil
FAC-SÍMILE
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Há oito anos, quando fui convidado a colaborar com o projeto Criança e Consumo, que estava sendo criado pelo Instituto Alana, a primeira ideia que me veio à cabeça foi a de que a sociedade brasileira não deveria medir esforços na produção de convergências que fossem capazes de enfrentar os interesses dos responsáveis pela exploração comercial da inocência por meio da indução compulsiva ao consumo.
Um dos maiores problemas identificados naquele momento era a forma desregrada e, por vezes, inconsequente, com que muitas das empresas de produtos e serviços destinados ao consumo infantil usavam as mais variadas técnicas de publicidade para seduzir crianças no Brasil, causando toda sorte de problemas de estresse familiar e escolar. Por outro lado, era alentador saber que, se em vários outros países essa prática de sedução comercial não era permitida, nem tudo estava perdido.
De 2006 a 2014, foram muitos debates, embates, articulações e vontade de “fazer valer nossos valores essenciais para influir em nossas escolhas de vida”, de modo que a infância não se resuma a uma “possibilidade de negócio, mas a possibilidade de um mundo melhor”, como procurei sintetizar da fala de Ana Lúcia Villela, fundadora e presidente do Alana, em um artigo intituladoSociabilidade Infantil (DN, 01/04/2006). Nesse período, o Instituto, com apoio do Ministério Público, obteve muitas conquistas para deter excessos do mercado na relação com a infância, em ações envolvendo retiradas de comerciais do ar e multas inibidoras.
Os avanços por uma infância livre de publicidade tiveram, entretanto, na sexta-feira passada (4), um dia histórico, quando foi publicada no Diário Oficial da União a norma que proíbe a publicidade dirigida à criança em todo território nacional. A Resolução nº 163 (13/03/2014) do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) – órgão do qual o Alana faz parte, como uma das entidades da sociedade civil, ao lado de ministérios do governo federal – já está, portanto, em vigor, tipificando como abusiva essa prática de comunicação mercadológica em eventos, espaços públicos, páginas de internet, canais de televisão, creches, escolas (inclusive uniformes e materiais didáticos), pontos de venda e nas embalagens de produtos.
É provável que haja questionamento da resolução do Conanda junto ao Poder Judiciário, por parte de agentes do mercado que exploram a credulidade infantil, mas os direitos de cidadania da criança estão cada vez mais evidentes, e uma forma de demonstrarmos respeito a eles é colocarmo-nos na posição da criança, como defendeu e fez o escritor, médico e educador polonês Janusz Korczak (1878 - 1942), autor do ensaio “O direito da criança ao respeito”, no qual traça uma perspectiva das considerações que viriam a ser dadas à pessoa criança, como um tipo particular de sujeito de direito.
Não deixar que a publicidade aborde diretamente a criança é um passo para uma nova infância, com liberdade para filhos e alívio para pais e educadores. Na nova arquitetura sociopolítica que se pretende para o mundo pós hipermoderno, não cabe mais a violência do vínculo forçado ao consumo pelo assédio perturbador das empresas, em comunicações de mercado que tornam a criança refém da publicidade e os pais reféns das crianças. A norma do Conanda dá um basta nessa anomalia social, libertando meninas e meninos dessas técnicas de domesticação do desejo a fim de que possam usufruir de suas reservas de espontaneidade.
O nivelamento entre crianças e adultos na publicidade tem sido um dos responsáveis pela supressão do tempo da infância. Não é mais aceitável essa perda generalizada de espaços imaginativos, por conta do estímulo ao consumismo. As corporações que se valem do argumento de que, como cidadãs, as crianças também precisam ter acesso direto às informações de produtos e serviços postos à venda e que seriam do seu interesse, não se dão conta, ou agem de má-fé, por desdenharem da representação da infância em sua igualdade diferenciada.
No plano do Direito, a justiça se dá na distinção existente entre os iguais, na igualdade da diferença. A importância de a sociedade cuidar para que a publicidade de produtos e serviços infantis seja dirigida aos pais e adultos cuidadores, e não ao público infantil, está no reconhecimento de que a criança é um outro – com necessidades e capacidade de participação próprias –, apesar de semelhante. Uma infância livre de publicidade está mais próxima da emancipação do si.
Na história da infância, entre episódios de incompreensão, repressão, exclusão e avanços conceituais e práticos, pode-se dizer que a norma do Conanda para que as empresas deixem as crianças em paz é um marco a ser comemorado pela sensatez da dinâmica democrática. Essa conquista leva em consideração uma infância do presente, e não aquela do vir a ser, pregada pela ideologia geracional. Com ela, a criança conta com uma força legal capaz de protegê-la dessa sanha gananciosa que a tudo transforma em mercadoria e a todos em estatísticas de consumo.

terça-feira, 1 de abril de 2014

                    
                        A chegada do caminho para a democracia

Preferi chamar assim esse artigo, ao invés de algum título focado na ditadura. Sim porque tenho certeza que com o período de ditadura começamos nosso duro caminhar para democracia. Hoje sei que esse caminho é contínuo. Naqueles idos eu achava que bastava terminar com aquela insuportável limitação da minha liberdade e o país avançaria.  Eu tinha apenas tinha treze anos. Entendia mais ou menos o que estava acontecendo, gastei todo o resto da minha adolescência e juventude me surpreendendo e compreendendo. Mas ainda nesses dias tento entender. Foi o que sobrou para a minha geração, continuar tentando entender aqueles duros 20anos que repercutem na nossa trajetória até hoje.
Nesse momento dos 50 anos todas as mídias contam a história, revelam os bastidores, alguns mais terríveis do que era possível imaginar na época. Tenho lido no jornal a história dos que morreram, dos artistas que foram amordaçados e refletido sobre o que aconteceu com a população comum, aquela que viveu e vive sem holofotes. O que representou para a classe média, para as favelas ter vivido 20 anos de um crescente mando autoritário? Para aquele que não era ligado à política ou para adolescentes como eu? Onde está esse horror hoje nas nossas vidas? Onde estão os resquícios desses torturadores que aparecem, sem arrependimento, na Comissão da Verdade? 
Percebo que os valores da ditadura permanecem nas nossas lideranças autoritárias dentro de nossas empresas, especialmente as de herança pública, muitas nascidas pelas mãos do exército. Na corrupção absurda do nosso país. Nas nossas prisões desumanas. Na nossa pedagogia que não consegue criar escolas e universidades democráticas, onde o aluno possa ser. Nos nossos orfanatos e depósitos de meninos infratores. No nosso racismo, persistente, que extermina nossos jovens. No estupro das mulheres e na homofobia. Nos nossos políticos que se comportam, até hoje, como se existisse a Casa Grande.
Precisamos falar dos valores e procedimentos da ditadura por que eles estão aqui, vivos no nosso cotidiano.  A principal arma da ditadura foi a capacidade de instalar o medo nos cidadãos comuns. Eu era uma jovem que vinha de uma classe média baixa, de um pai com alma anarquista, mas um correto empregado de uma empresa, com salário baixo e grande luta para conseguir comprar a casa própria.  Sem nenhuma sofisticação, amava a liberdade e entendia perfeitamente que ela estava sendo atingida, mais uma vez. Eu sonhava, queria estudar, seguir meu caminho e tinha uma inata sensibilidade para a injustiça social. A repressão foi um passo para acentuar esses sentimentos. E eu, sem participar de partidos políticos, comecei a atuar na educação e na cultura, como sei que muitos e muitos fizeram e que não se tornaram famosos, nem estão hoje dando testemunhos sobre os 50 anos da ditadura, mas tem uma história para contar.
Quando, nos anos 80 fui professora na Faculdade de Comunicação da PUC Rio, fiz um trabalho com os meus alunos sobre a propaganda e a cultura durante a ditadura e ouvi de uma aluna: - “A gente aprendeu o silêncio, nossos pais falavam baixo, pediam que não falássemos! No ar tinha um peso, que a gente, criança, não entendia”. Foi assim que a ditadura calou algo muito importante nos jovens, que sem compreender o que acontecia, estavam envolvidos naqueles terríveis anos. A tentativa era matar o protagonismo. O silêncio passou a fazer parte. Não tinha agenda com nome e telefone de amigos, não se conversava na cantina do colégio, não se falava alto, ou num tom normal nunca, nem quando fora do Brasil, como aconteceu comigo em 1974, por que certamente lá em Paris nossos sussurros poderiam ser ouvidos por espiões nas mesas ao lado. O silêncio também imperava nos corredores dos barracões para onde foi a sociologia da USP, onde estudei.  Muitos se foram pela morte outros levaram nossos sonhos para o exílio.
 Eu fiquei aqui, entre medrosa e corajosa. Por influência da família de meu namorado saí em busca de aprendizado e consciência. Eu namorava o irmão da Clarice Herzog.  Vlado foi um importante inspirador da minha adolescência atormentada. Também nessa época conheci o irmão de meu namorado, João Ribeiro Chaves Neto. Estudávamos no mesmo colégio Fernão Dias Paes. Lá fizemos um jogral, dirigido por ele no final do ano de 1965, creio. Depois foi para a São Francisco, mais tarde como advogado foi Vice Presidente do Citibank. Mas guardava um artista dentro dele, que de forma amadora praticava autorias e direções teatrais. Com ele eu fui para o teatro. Com ele fiz a leitura de uma adaptação de Tchaikovsky  – O urso – onde em 1967/68 no Teatro Casarão, um teatro de resistência em São Paulo. Nessa peça meu papel era de uma empregada doméstica russa, que discursava em cima das cadeiras com um espanador na mão! Éramos destemidos, encenamos a peça por pelo menos um mês enquanto ela passava pela aprovação da censura. No dia 13 de dezembro 1968, por alguma ironia já que foi o dia do A I- 5, aquele que apertou definitivamente a ditadura, o texto original nos retornou pelo correio. O texto foi entregue mimiografado, como (alguém ainda sabe o que é isso?), mas voltou com páginas rasuradas, riscadas, rasgadas. E o argumento da não liberação foi exatamente esse: eles não podiam liberar um texto que nós havíamos enviado com rasuras! !
 
 TucArena em São Paulo com participação especial de Sérgio Ricardo. A programação será:
01 de abril       -           Patética
02 de abril       -           Patética
 
Patética, peça escrita por João Ribeiro Chaves Neto em 1978, apresenta uma trupe de artistas circenses que representam pela primeira e última vez a história de Glauco Horowitz, que inicia em um navio atracado no porto do Rio de Janeiro e termina em uma tarde escura em São Paulo. Através de uma estrutura metateatral, a peça discute a censura, ao mesmo tempo que conta a vida de Vladimir Herzog, desde a imigração de seus pais para o Brasil, o trabalho de resistência do jornalista, a sua prisão para prestar depoimentos nas dependências do DOI-CODI, a morte sob tortura e a luta de sua família para provar que foi assassinado. No fim, o espetáculo da trupe é proibido e o próprio circo, fechado.  
Com o texto, todo rasurado nas mãos, na porta do Casarão, o elenco conversava com João: O que fazer? Estávamos a apenas a 3 horas do espetáculo, já todo vendido. Começamos a ouvir falar do Ato Institucional número 5. As notícias chegavam pela rádio corredor da cidade que só sussurrava. As informações não circulavam rápido como hoje. O rádio era importante e recorremos a ele. Era fácil entender o que significava aquele Ato, foi apavorante! Mas mesmo assim ainda não tínhamos consciência do que ele significaria nos próximos anos de nossas vidas.
Foi a última vez que o medo não nos amordaçou. Encenamos e enterramos a peça. A minha empregada ficou hilária, irônica, fantástica! Não sabíamos que no nosso destino, meu e do João, estava o desafio de perder o Vlado, Vladimir Herzog, assassinado brutalmente em outubro de 1975. João Ribeiro Chaves, chocado, escreveu Patética, uma peça de teatro que conta através de artistas de circo a história da família de Vlado. Uma família que fugiu do nazismo para o Brasil, passando pela Itália, trazendo um Vlado menino, para ser assassinado por outra ditadura no longínquo Brasil, o país do qual esperavam paz.
A peça ganhou o prêmio Moliére, um prêmio que João jamais recebeu.  Foi encenada apenas uma vez. Volta aos palcos numa leitura encenada dia dois e três de abril em São Paulo, num evento do Instituto Vladimir Herzog.
 João não está mais aqui para contar sua história. Mas seu sobrinho Ivo Herzog que criou o Instituto Vladimir Herzog não esqueceu de homenageá-lo nesses dias de apavorante memória. Sobramos alguns artistas que fizemos teatro com João. Aqui no Rio de Janeiro a leitura do “Eles não usam Black Tié”, dirigida por João (peça proibida até 1979, por incrível que pareça) no teatro da UNE na Praia do Flamengo, que também veio abaixo como o Casarão, deixou para mim lembranças distantes de minha carreira interrompida. João foi assassinado pela ditadura, como muitos. Um assassinato pouco comentado, porque foram aqueles que não foram presos, nem perderam seus corpos físicos sob tortura. Mataram sua alma. Suas esperanças, seu fazer. Precisamos considerar no cálculo de mortos pela ditadura os muitos que tiveram suas almas assassinadas. Morreram aos poucos ao longo da vida, por que não puderam ser.
Que se faça outra ressalva, muitos morrem todo dia pela terrível herança que sobrou. Podemos gritar que temos democracia, mas não dá para não ter consciência da distância que falta para podermos realmente comemorar. Enquanto a democracia não valer para todos, não temos. Nosso caminho aberto por muitos, precisa continuar sendo percorrido com determinação para não ser contaminado pelo câncer, que não foi totalmente eliminado.  
Eu hoje, não mais uma menina de 13 anos, uma senhora cito Betinho que foi o primeiro, em 1993, a fazer um movimento cidadão com a Campanha da Ação da Cidadania. Ele escolheu um foco: a fome. A fome simbólica, que logo ganhou novos caminhos, que nos acompanham até hoje: temos fome de quê?   

“A participação é um dos cinco princípios da democracia. Através dela é possível tornar realidade que todas as pessoas se responsabilizem pelo que acontece nos níveis local, nacional e internacional. Desta forma, se é co-responsável por tudo o que ocorre. Para o pensamento político conservador o excesso de participação é o maior perigo para a democracia, pois quanto maior participação da cidadania, maiores são os riscos para a estabilidade democrática. Nas sociedades autoritárias se faz de tudo para limitar, restringir e desestimular a participação. Na cultura brasileira a participação é percebida de forma limitada e limitante. Participar tornou-se uma exceção, o medo e a resignação da participação instalou-se nos hábitos e, portanto, na cultura brasileira. Esta situação cria um cidadão limitado, fechado, sem iniciativa e dependente. Frente à cultura autoritária surge a cultura democrática, a cultura da participação. Com a Ação da Cidadania surge um movimento amplo que vai continuar ajudando a mudar a cara do Brasil. É através dessa participação que está surgindo o novo cidadão e as novas condições para que o Brasil possa superar a miséria, a exclusão e caminhar no horizonte de uma sociedade democrática” Betinho

 Patética

TucArena em São Paulo com participação especial de Sérgio Ricardo. A programação será:
01 de abril       -           Patética
02 de abril       -           Patética

Patética, peça escrita por João Ribeiro Chaves Neto em 1978, apresenta uma trupe de artistas circenses que representam pela primeira e última vez a história de Glauco Horowitz, que inicia em um navio atracado no porto do Rio de Janeiro e termina em uma tarde escura em São Paulo. Através de uma estrutura metateatral, a peça discute a censura, ao mesmo tempo que conta a vida de Vladimir Herzog, desde a imigração de seus pais para o Brasil, o trabalho de resistência do jornalista, a sua prisão para prestar depoimentos nas dependências do DOI-CODI, a morte sob tortura e a luta de sua família para provar que foi assassinado. No fim, o espetáculo da trupe é proibido e o próprio circo, fechado. 

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Por que as coisas são como são?


Tenho, nos últimos 15 anos, mergulhado na alma das organizações. São empresas grandes, multinacionais, públicas, pequenas ou organizações sociais. Graças ao modelo de pesquisa – Offplan – pude aprender muito, já que sentimentos verdadeiros dos que trabalham nas organizações emergem com facilidade. Nessas andanças ouvi até Eduardo Coutinho (ele trabalhou numa ONG), ele que ouvia e ouvia, construindo sua arte através das pessoas. 
 
Muito poucas pessoas têm interesse verdadeiro na escuta. Cada vez mais cada um de nós parece estar preso dentro de si, mesmo que nossos polegares passeiem pelos fabulosos instrumentos tecnológicos. As pessoas presas às máquinas estão distantes, falamos o que queremos, quando queremos, e só lemos com atenção seletiva as mensagens que circulam incessantemente. Só o fato de ter vontade de ouvir, de anotar, libera o que está às vezes mais escondido, até de nossa consciência. É fácil fechar meus olhos e me lembrar de frases, expressões, desenhos que deixam claro que a felicidade é rara, para a maioria, no mundo do trabalho. Já escrevi um artigo no passado onde me perguntava: Por que o trabalho tem que produzir dor? Na maioria das vezes essa dor não é consequência de baixos salários ou falta de benefícios. 
 
Na maioria das vezes essa dor é produzida por um modelo de gestão autoritário, na falta de comunicação interna transparente e na quase absoluta falta de comunicação face a face. O que impressiona é que nesses anos dourados do nosso século a maioria das empresas escreveu missão, visão e valores. A Responsabilidade Social, o meio ambiente, o conceito de stakeholders, a sustentabilidade passaram a fazer parte dos fazeres da empresa, multiplicaram-se os balanços sociais e depois relatórios, mais completos, como o Global Report Iniciative. Mas as organizações parecem sofrer de uma espécie de esquizofrenia. Fala-se, mas atuar de forma diferente, ainda caminha a lentos passos. 
 
A cultura autoritária e hierárquica de nosso País continua a influenciar a realidade. Temos baixíssima capacidade para uma liderança compartilhada e uma enorme dificuldade de aprender a ter uma visão sistêmica. Quando pensamos nos nossos municípios, nas organizações públicas em geral, nas relações dos moradores das cidades com seus dirigentes, essa falta de escuta mostra o quanto poucos escolhem como vivemos. 
 
Trabalhar para alcançar a sustentabilidade exige, acima de tudo, mudar nosso modelo mental. Somos um País onde a maioria fica distante do poder em qualquer instituição ou organização, um País extremamente desigual. Isso gera dor para a maioria. O autoritarismo e o medo combatem hoje a autonomia que a tecnologia nos traz. Crise. Uma profunda crise ética. Isso afeta por dentro as organizações, mas também as vendas, o pós venda, o marketing de todas elas. Uma sensação de viver um mundo de mentira, a desconexão entre o que se prega e como se age. Os americanos falam emwalk the talk
 
Isso virou o padrão normal da liderança, inclusive na política. Assistindo TV, os telejornais e os comerciais, fingimos acreditar no que sabemos ser diferente. Como vamos sair desse paradigma mental? Não existe ética sem escolhas e sem renúncia. A empresa, que quer de fato ser sustentável e oferecer felicidade a seus stakeholders, precisa respeitar a vida, de verdade. Lá estão os valores escritos, atrás dos cartões de visita, dos crachás, nos banners, publicados em maravilhosas peças criativas, sem falar nas peças publicitárias. Mas quando ouvimos os colaboradores, as comunidades, muitas vezes encontramos uma realidade muito diferente. 
 
Cada vez mais a comunicação ocupará um lugar desafiante, precisamos sair do velho modelo que nos impunha manter o silêncio na base e caminhar para transformar consciências em direção às novas atitudes: ouvir as bases. Inclusive nas cidades. A potência das organizações está nos seus relacionamentos, no compromisso com todos aqueles que fazem parte do negócio, mesmo que não tenha sequer uma ação da empresa na bolsa de valores. Podemos?