Entranhas
falam. Sempre alguns escutam.
(da série Contos do
trabalho)
Original publicado no site da ABERJE.
Corri o
dia todo. Vinha de outros estados e cidades. Aprendia pouco a pouco a ouvir.
Tudo muito diferente. Vidas, expectativas completamente diversas das do meu dia
a dia. Afinal eu sempre trabalhei atrás
de uma mesa. Com papéis, canetas e lápis. Mais tarde com computadores. Como
compreender quem trabalha com o “pesado”? Fogo, trilhos, navio, mato, perigo de
acidentes, desastres? Em mim às vezes dói a cabeça, para eles o que dói é a
coluna, o joelho, o braço. A mente
parece se apagar e reflete no corpo e no coração.
Mas
tudo bem. Cheguei e fui para um hotel muito mais ou menos, mais menos que mais.
A cidade lá fora quieta. Seus moradores dormem cedo porque acordam cedo.
Trabalho físico. Corpo suado. Muitas vezes debaixo de 35/40 graus. Abaixa,
levanta! A roupa que protege é pesada e sufoca. Uma vez um diretor, dessa
empresa, me disse que gostaria de ver esses trabalhadores de uniforme branco.
Olhei para ele como se para um ET! Será que nunca tinha ido lá, onde eles
trabalhavam? A possibilidade empática nunca havia se oportunizado?
Sei que
ele não foi, de verdade. Ele realmente esteve lá sim, algumas poucas vezes,
desde que assumiu o cargo de Diretor. Rápido como convém a um chefe. De carro,
com algum gerente dirigindo. Doava algumas palavras e nenhum dos dois ouvidos.
As palavras não deixavam vestígios no sentir dos empregados, apenas ordens racionais.
Sempre no fechamento do discurso entrava um: “muito obrigada, conto com vocês!” Afinal o certo era ir á área
operacional, momento de plena generosidade, mesmo que correndo, apressado.
Quando
as coisas não iam bem e podiam afetar avaliações e bônus, rapidamente criava-se
um novo processo. Os engenheiros adoram planilhas, manuais e cartilhas. Tem a
ilusão, que com isso, estão controlando a vida, as emoções, o pensamento. Recebem
como recompensa, e ficarão felizes, 70% de preenchimento do processo no sistema
e eles nem se dão conta de que as planilhas estão vazias de comprometimento.
E ele
fazendo seu discurso. Os trabalhadores continuaram a olhar para ele, aquele que
vivia num outro planeta. Alguns humildes, acostumados, outros roendo suas
revoltas no silêncio absoluto da obrigação do pão, do macarrão, da educação dos
filhos. Suavam lágrimas enquanto o estômago queimava.
Cheguei
à área operacional, vendo tudo, com aquela minha imensa vontade de compreender.
Estava combinado que 12 empregados estariam ali para participar de uma reunião
comigo. Mas, não paravam de chegar! Não fechei a porta e deixei que viessem.
Pareciam, desesperadamente precisar falar. Eu tinha espaço para ouvir e, como
um maestro, dei chance ao diálogo! Tentei dar a oportunidade para todos tocarem
seus instrumentos. A música tinha a harmonia do sofrimento que se consolidou na
abertura do sanduíche, que um deles resolveu me mostrar: pão seco com uma tira
ressecada de presunto, somada a outra fatia ressecada de queijo. Engoliam assim
em silêncio o duro trabalho do dia a dia, tentando entender as manchetes dos
jornais que alardeavam os lucros da empresa. E eu estava ali fazendo algo muito inusitado:
escutando e tomando notas.
No meio
dos 24 empregados, que acabaram formando o grupo na sala, um dos operários
respondeu à minha sugestão para desenhar (criar uma imagem que simbolizasse
como se conversava na empresa), com uma felicidade inusitada: - “Esperei toda minha vida para fazer esse
desenho!” Pegou o papel e a caneta pilot, como talvez nunca tenha feito
quando garoto, e desenhou a si mesmo dividido: de um lado de seu corpo via-se o
uniforme do trabalho, a outra metade era seu corpo... por dentro. Veias e
músculos apareciam como nos desenhos de Alex Grey, o artista plástico. Eu podia ver essa metade viva do corpo, a
pulsar! Carregando vida, ele procurava me mostrar que existia, que debaixo do
uniforme guardava ainda sua identidade.
Peguei
aquele desenho sentindo que ele carregava transformação. Era tão verdadeiro e
simbólico que rodou no computador de muitos engenheiros, gerentes e diretores
sensíveis e das equipes de comunicação que, naquela devolutiva de diagnóstico,
ainda escutaram a frase: “A comunicação
da empresa é ótima, mas falta coração nas palavras!” Pingou esperança.