quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

UMA SEMANA



Entrava no banheiro carregando seu próprio peso. Quando a porta se fechava podia deixar transparecer toda sua dor. Entrava no box, depois do ritual de deixar cair suas peças de roupa. O maior trabalho era tirar a calcinha. Ainda sentia aquelas pequenas pontadas na barriga que tentava voltar a seu tamanho normal, depois da expansão. Parecia que todo o peso do corpo estava nos seios. Naqueles seios pequenos, bem feitos que tantos elogios haviam recebidos pelos homens que chegaram até lá. Agora inchados, ardidos, carregavam leite e dor. Ligou o chuveiro. Bendita água.
Era um bom chuveiro aquele. A água descia por seu corpo, seus seios. Era bom deixar correr a água sobre o peito inchado e doído. A água quente parecia derreter o leite e a dor como um sorvete. Os peitos, como ela os chamava quando estavam cheios de leite, pareciam se recordar de quando eram seios. Na realidade, cheios de leite eles ansiavam pela  boca gulosa de um bebê.
 Ela pensou em Sofia e um tom nublado invadiu sua mente. Pegou a bombinha e começou a tirar o leite dos peitos cheios. O alimento escorria misturando-se à água do chuveiro. As lágrimas escorriam e ela parecia se melar dos líquidos da vida.

Era uma longo ritual de prazer e dor. A dor do peito aliviava enquanto se acentuava a dor da alma. Era no fundo um ritual de limpeza. Precisava recomeçar e enquanto aquele leite se formasse era quase impossível descobrir algum atalho. Às vezes ficava muito angustiada de não estar recolhendo aquele leite para dar a alguma criança viva que precisasse. Mas era pouco... Depois de tudo o leite havia diminuído, não era o suficiente para doar, talvez se algum bebe estivesse por perto para sugar e não deixar o leite acabar... Será que suportaria colocar um bebe agora no seu peito?
 Não podia sequer ver um bebê!
Era como se conseguisse ter contato com um buraco dentro dela que era um fundo de poço.
Não dormia mais. Desde aquela manhã suas noites eram observar o sono do parceiro e fechar os olhos e entrar numa espécie de transe.  Olhos. Esse foi um dos transes marcantes. Eram muitos olhos, de raças diferentes, de idades diferentes. Mas eram também olhos de planetas diferentes. Olhos de ETS, amendoados ou muito redondos. Eles desfilavam no escuro do quarto num show de emoções. Olhos abertos, espertos, chorosos, suplicantes ou até sorridentes.

Ela levantava, se arrastava para o banheiro, lavava o rosto, sentia a angústia, uma espécie de suplício, o desejo de dormir, esquecer. Voltava para a cama e invejava o sono tranqüilo dele. Fechava os olhos e começava a dança dos olhos. Era uma dança silenciosa, como se toda a humanidade (o universo?) desfilasse seus olhos para ela. Parecia ouvir o choro distante de um bebê.
 Quem estaria alimentando Sofia? O peito doía, ela virava na cama, virava de bruço e se lembrava que há pouco mais de três meses era impossível dormir de bruço. Como essa era sua posição preferida para dormir, tinha aprendido a fazer um buraco na areia da praia e encaixar com orgulho seu barrigão. A barriga tinha acabado numa linda menina de nariz arrebitado, que ensinou a ela o que era o êxtase e agora ensinava o que era o vazio.
O choro de bebes. Muitos bebês choravam. Ela virava para um lado e para o outro. Tapava os ouvidos, procurando não fazer barulho para não acordar o companheiro, afinal ele passara todo o dia sentado na cadeira de balanço que antes servia de palco para a amamentação, todo vestido de preto, com olhar perdido. Ele precisava dormir... Mas, ela também queria desesperadamente dormir, se possível... para sempre.

 Os bebes insistiam, choravam de fome. Ela resolveu se entregar naqueles inúmeros choros, não mais tentar fugir. Difícil dizer o que sentia no peito, nos seios. Esses latejavam. Ela tinha leite e os bebês onde estavam? De repente os vários chorinhos angustiados viraram um só, e aquele choro ela conhecia. Entregou-se por instantes e pouco a pouco se deu conta do que via.
 Uma mulher, uma sereia, toda dourada sorria para ela. Surpresa, começou a olhar a cena perdendo o espanto e o medo. Afinal a linda mulher sereia sorria, parecia doce. A cena era de uma total harmonia. Perdido, no dourado daquele ser, se viam inúmeros bebês. Todos nus, em movimento, naqueles movimentos de dança dos bebês. Seu olhar foi subindo e lá estava Sofia nos braços daquele anjo sereia. Mamava tranqüila e transmitia toda a paz que uma mãe pode desejar a seu bebe.

Sofia não sofria de fome como tantas crianças no mundo. Estava fora do mundo, naquele sono súbito que há havia surpreendido. A ela, e a todos, numa bela manhã de domingo. Estava feliz e talvez a voz que ela havia escutado na segunda–feira estava certa: Sofia só precisava de pouco tempo, de muito amor. Talvez isso explicasse o sentimento de agradecimento que às vezes sentia no conflito da dor. Que eu consiga aprender com isso, pensava ela naquela semana. Sofia foi muito esperada e amada. Seus seis irmãos tocavam o barrigão, sentiam os movimentos e depois assistiam, como a um espetáculo, seu primeiro banho, seus movimentos. Ouviam entusiasmados seus gritinhos. Sofia mudou de freqüência. A vida dela tinha que poder captar novas freqüências para continuar.

Foi para um mercado. Os olhos nublados, os seios latejando. Sozinha saiu com o carro. Foi para a banca de flores, olhou procurando qual delas fazia parte daquela história. Seus olhos pararam de repente numa florzinha pequena, cor de rosa. Ela conhecia de passagem, mas nunca havia comprado e nem sabia seu nome. Com dificuldade pediu ao rapaz, um maço. Ele prontamente atendeu aquela mulher magra, que há uma semana não conseguia mastigar, só tomava líquidos, e sonhava com olhos de bebês e sereia. Numa voz pequena, puxada lá das raízes, ela perguntou: - Qual o nome dessa flor?   Ele respondeu distraído no pacote: Sempre Viva.

Lá foi ela com sua Sempre Viva a caminho do mar. Estacionou. Desceu na praia e com as mãos chorando cavou um buraco, não mais para abrigar uma barriga, que como numa caverna abrigava uma vida, mas para servir de vaso à Sempre Viva. Sentou na areia e totalmente em silêncio esperou a chegada do barulho do mar com suas ondas espumantes.
 Ela não sabe precisar quanto tempo se passou, mas o mar chegou. E chegou. Seus olhos fixos nunca perceberam com tanta clareza o MOVIMENTO. O mar veio. Balançou. Carregou as flores num golpe de onda. Foram engolidas num segundo, como Sofia, pra algum lugar. Um grito dentro dela, ela mesma ouviu. Só ela ouviu e sentiu como se uma foice ceifasse seu peito esquerdo. Era esse o peito que Sofia mais gostava. Toda mãe sabe que seus bebes tem preferência.

Alguns bebês são mortos pela ganância, outros pela pobreza, fome, miséria. Alguns escolhem partir. Vieram só para partir.
Ela levantou, olhou para o mar, numa mistura de agradecimento e medo e seguiu sem enxergar até o carro. Chovia em seus olhos.
Seguiu para casa e sentiu um enorme amor por aquela mulher que amamentava Sofia. Andou em volta da Lagoa todo o resto da semana. Sentava embaixo de uma árvore e respirava, só respirava. Um dos dias uma mulher que nunca mais viu, conversou com ela como se fosse uma grande amiga.

Uma semana depois resolveu repetir o ritual da praia. Voltou ao mercado, à mesma barraca e com voz firme pediu: - Uma Sempre Viva, por favor. Um outro rapaz respondeu que não tinha, haviam acabado. Ela pestanejou e levantou o olhar pelas prateleiras onde estavam alguns materiais para fazer arranjos e lá no alto, na última prateleira, havia um maço de Sempre Viva, cor de rosa, já arrumado para presente. O rapaz, quando informado, subiu na escada para apanhar aquela flor desejada, reclamando de como ela poderia ter ido parar ali. Ora, estava esperando.

Ela sabia que tudo que aprendeu naquela semana seria revisto, revisitado, reavaliado, revivido por toda sua vida e que os vasos sempre que possível teriam Sempre Vivas. Ela também descobriu mais tarde que o tempo dessas flores coincide com o tempo de vida e ida de Sofia, a que estará sempre viva.

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